terça-feira, 24 de abril de 2012

A Arte de Ver: uma aula de quem entende do assunto Aula "Lúcia, mas o que é que o cego quer com cinema???" "O mesmo que você", respondo. "Se divertir, relaxar". "Ué, mas eu enxergo e ele não". "Por isso que ele não vai, só vai quando tem audiodescrição!" Ou: "Mas o que é isso mesmo que você faz" audiodescrição? É coisa pra cego, né?" "É", suspiro. "É coisa pra cego". E esta, então, que é de matar e muito mais comum do que se imagina: "Mas não é mais fácil como era, alguém contar pra ele o que está acontecendo em vez dessa trabalheira toda de roteiro e microfone?" "Ah, Deus" Mas eu vou em frente. Aproveito as poucas oportunidades que aparecem para falar sobre AD no dia a dia e pareço professora de cursinho: pra não ficar chata, tento despertar o máximo de interesse em um mínimo de tempo, só falta cantar definições e conceitos com aquele chapéu cheio de pontas com sininhos. Ontem, sábado e feriado, foi em um restaurante, durante uma comemoração em um daqueles mesões que reúnem família e amigos. Apontei o batente todo trabalhado de uma porta e, quando vi, já eram seis pessoas descrevendo (ou, pelo menos, tentando) e olhando para mim à espera de aprovação. Eu me divertia com aquilo enquanto lembrava da minha primeira aula com a Lívia Motta, quando ela mostrou uma fotografia de um par de botas cobertas por limo em cima de uma pedra e pediu a descrição. Quase ninguém viu as botas. E elas estavam lá, gigantes! O leitor pode achar um absurdo, mas é exatamente assim que acontece. Com a audiodescrição, a gente percebe que vê muito pouco de tudo e reaprende a olhar. Presta atenção de verdade e vai redescobrindo as coisas. Ontem, no restaurante (e na semana passada, e em tantos outros dias), contei da pesquisa necessária para descrever com o máximo de precisão, por exemplo, interiores de igrejas, artefatos militares, afrescos do Michelângelo e murais do Diego Rivera que estão nos livros, tem imagem que leva mais de uma hora entre pesquisa e descrição, e aí surgiu uma velha e recorrente questão: "Mas por que detalhar pro cego uma coisa que nem quem enxerga tá vendo ou não sabe? Não é preciosismo, não? Dá pra simplificar, falar o básico". Vamos lá: o olhar comum é muito superficial, por isso é necessário o trabalho profissional de um audiodescritor, que estabelece o que é prioritário e relevante em cada imagem, mas descreve o máximo possível dela e o único critério que usa (ou pelo menos deveria usar) para um maior ou menor número de informações é o tempo ou o espaço que tem para cada descrição, e jamais elimina elementos que decide não serem importantes só "pra simplificar" ou porque "nem quem enxerga tá vendo ou não sabe". Quanta pretensão acharmos que podemos decidir o que é que a pessoa com deficiência visual (ou qualquer outra) quer e precisa saber ou não sobre um assunto! E não podemos nivelar por baixo, a partir da nossa própria ignorância, não é? Bom, tinha um quadro em uma das paredes do restaurante que eu já conhecia e um familiar descreveu: "Quadro de uma estátua de mulher seminua em um pedestal, é isso?" "É", respondi. E continuei: "Mas eu também tô vendo um quadro redondo, com uma fotografia em preto e branco de uma estátua de mármore de uma mulher de frente, ocupando quase toda a foto, com o rosto de perfil, cabelos longos, encaracolados e semipresos, braço esquerdo dobrado atrás da cabeça, braço direito sobre os seios nus. Usa uma saia longa e transparente e está com os pés descalços sobre um pedestal cilíndrico". "Ahhh, agora eu entendi", ele disse. E uma tia, toda orgulhosa porque estava mandando muito bem na brincadeira das descrições, viu uma pintura e perguntou: "Acho que é um soldado ali. Quando a gente não tem certeza, como faz?" "Pesquisa, amplia a imagem. Sem ter certeza, não diga", respondi. Esta regrinha ficou engraçada na mesma aula da Lívia, que pediu que descrevêssemos a foto de um alpinista, de longe, já na metade de uma das várias e altíssimas montanhas ao redor. Pensando na regra, muita gente escreveu "pessoa escalando montanha" e ela, rindo: "Gente, pelo amor de Deus! Na altura em que está, se não é alpinista, só pode ser o Homem-Aranha!!!" por Lúcia Maria Fonte: Outros Olhares Nota do Blog: A Lúcia é fantástica, não? Mais um super espaço sobre audiodescrição que recomendamos para nossos leitores seguirem diariamente! Related Posts with Thumbnails Enviar por e-mail BlogThis! Compartilhar no Twitter Compartilhar no Facebook Compartilhar no Orkut Publicado às permanent link envie esta notícia para seus amigos 2 comentários: definition list of 2 items Anônimo disse... Muito bom, Lúcia! É tão bom ver a aplicação dos conhecimentos associados ao respeito pelas pessoas... Acredito que seja assim mesmo que conseguiremos disseminar o conceito da AD. Com Paciência, Persistência e Perseverança. Adorei! bj

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